sábado, 30 de janeiro de 2010

Araweté, O Povo Do Ipixuna

O interesse antropológico tem se afirmado em mim, inicialmente surgiu com o projecto em Palmela onde o descamar do lugar levou-me a um certo envolvimento antropológico, depois o desejo de poder desenvolver projectos em zonas como Trás-os-Montes, Serra-da-Estrela, Serra-da-Lousã, de trabalhar com jovens de lá, de me entranhar com as vivências e lugares e de quem sabe até conseguir que me emprestem um espaço carregado de gestos hominídeos de gerações e gerações, onde possa no silêncio escutar as memórias registadas nas paredes, no chão e até mesmo em paisagens, e embrenhada neste bichinho da antropologia acabei por mergulhar neste livro:

É uma viagem belíssima contada com base no estudo antropológico de Eduardo Viveiros de Castro com os Araweté, povo tupi-guarani, que habita junto ao rio Ipixuna conhecidos por "índios de olhos verdes", uma escrita extremamente límpida que nos conta a sua mitologia, como os humanos, os "bide", foram abandonados pelos deuses, em que uns fugiram para os dois céus, outros se afundaram nas águas, criando o subterrâneo e deixando-os para trás, ainda que estejam sempre em contacto com eles. Relata as adversidades com que lutaram nomeadamente as doenças dos homens brancos, os ataques dos Parakanã, e a forma como acabaram por coexistir com ambos, embora a luta com o homem branco permaneça até aos dias de hoje, estando confinados a um território de onde não podem sair, pondo em risco a sua sobrevivência e cultura. Conta-nos das suas casas e pátios, de como as plantações de milho são determinantes para a contrução das aldeias, descreve a temporada do mel e as coletas, fala-nos das amizades, da relação entre apíhi-pihã, dos pagés e da sua importância no seio da tribo, e de como esta tribo não possuí um lider no conceito comum, o livro vem ainda com fotografias que nos mostram os Araweté no seu quotidiano: na tecelagem, na cestaria, na pescaria, nas festas e na floresta.




Livro:
Araweté, O Povo do Ipixuna, Eduardo Viveiros de Castro, Museu Nacional de Etnologia, Assírio & Alvim.

Sophia de Mello Breyner Andresen


                                                     AS GRUTAS

    O esplendor poisava solene sobre o mar. E --- entre as duas pedras erguidas numa relação tão justa que é talvez ali o lugar da Balança onde o equilíbrio do homem com as coisas é medido --- quase me cega a perfeição como um sol olhado de frente. Mas logo as águas verdes em sua transparência me diluem e eu mergulho tocando o silêncio azul e rápido dos peixes. Porém a beleza não é só solene mas também inumerável. De forma em forma vejo o mundo nascer e ser criado. Um grande rascasso vermelho passa em frente de mim que nunca antes imaginara. Limpa, a luz recorta promontórios e rochedos. É tudo igual a um sonho extremamente lúcido e acordado. Sem dúvida um novo mundo nos pede novas palavras, porém é tão grande o silêncio e tão clara a transparência que eu muda encosto a minha cara na superfície das águas lisas como um chão.
    As imagens atravessam os meus olhos e caminham para além de mim. Talvez eu vá ficando igual à almadilha da qual os pescadores dizem ser apenas água.
    Estarão as coisas deslumbradas de ser elas? Quem me trouxe finalmente a este lugar? Ressoa a vaga no interior da gruta rouca e a maré retirando deixou redondo e doirado o quarto de areia e pedra. No centro da manhã no centro do círculo do ar e do mar, no alto do penedo, no alto da coluna está poisada a rola branca do mar. Desertas surgem as pequenas praias.
    Um fio invisível de deslumbrado espanto me guia de gruta em gruta. Eis o mar e a luz vistos por dentro. Terror de penetrar na habitação secreta da beleza, terror de ver o que nem em sonhos eu ousara ver, terror de olhar de frente as imagens mais interiores a mim do que o meu próprio pensamento. Deslizam os meus ombros cercados de água e plantas roxas. Atravesso gargantas de pedra e a arquitectura do labirinto paira roída sobre o verde. Colunas de sombra e luz suportam o céu e terra. As anémonas rodeiam a grande sala de água onde os meus dedos tocam a areia rosada do fundo. E abro bem os olhos no silêncio líquido e verde onde rápidos, rápidos fogem de mim os peixes. Arcos e rosáceas suportam e desenham a claridade dos espaços matutinos. Os palácios do rei e do mar escorrem luz e água. Esta manhã é igual ao princípio do mundo e aqui eu venho ver o que jamais se viu.
    O meu olhar tornou-se liso como um vidro. Sirvo para que as coisas se vejam.
E eis que entro na gruta mais interior e mais cavada. Sombrias e azuis são as águas e paredes. Eu quereria poisar como uma rosa sobre o mar o meu amor neste silêncio. Quereria que o contivesse para sempre o círculo de espanto e de medusas. Aqui um líquido sol fosforescente e verde irrompe dos abismos e surge em suas portas.
    Mas já o mar exterior a luz rodeia a Balança. A linha das águas é lisa e limpa como um vidro. O azul recorta os promontórios aureolados de glória matinal. Tudo está vestido de solenidade de glória matinal. Tudo está vestido de solenidade e de nudez. Ali eu quereria chorar de gratidão com a cara encostada contra as pedras.

Sophia de Mello Breyner Andresen
Antologia, Mar, Caminho

por João César Monteiro
por João César Monteiro (parte II)

domingo, 24 de janeiro de 2010

Lourdes Castro

É fascinante perdermo-nos por entre mundos próprios, sentir que cada obra produzida por um artista, seja ele de que área for é única, como que um transcender de si mesmo numa constante procura dando ao mundo novas leituras, descobertas, ou seja enriquecendo-nos um pouco mais. Resolvi escolher o trabalho de Lourdes Castro, alguém que tem um fascínio pela questão das sombras, algo que provavelmente já nasceu muito cedo, e que de uma forma ou de outra invadiu as nossas infâncias, basta pensarmos por exemplo na história de Peter Pan escrita por James Barrie, em que Peter chora desconsolado porque não consegue colar a sua sombra ao seu corpo e Wendy muito solidária e desenvolta acorre cozendo-a a um dos seus pés, ou então recordarmo-nos dos teatros de sombras a que todos nós já brincámos entre sombras de pássaros a voar, lobos matreiros ou coelhos, são apenas alguns dos mais simples exemplos dos nossos tradicionais teatros de sombras, no entanto, para Lourdes Castro o momento consciente em que se apercebeu do real potencial deste tema surge quando está a executar impressão em serigrafia, colocando objectos sobre seda pré-sensibilizada e aí eis que surgem «verdadeiras sombras projectadas» cuja simplicidade da forma e potencial poético daqueles desenhos a fascinam de imediato iniciando em 1965 um processo de recolha de textos, imagens e reflexões pessoais relacionados com a sombra, o Álbum de família, composto por vários volumes. Da vasta obra de Lourdes Castro seleccionei algumas imagens do Grand Herbier D'Ombres e de Sombras à volta de um centro, heliografias e desenhos, mas quero ainda referir trabalhos importantes para perceber o seu intenso percurso como Objectos pintados de Alumínio, em que a artista ao banhar estes objectos está exactamente a produzir uma espécie de "sombra real" num acto que se aproxima da planificação, ou ainda as sombras de dois corpos, bordados sobre o lençol, em que se assume apenas a silhueta em direcção a um acto de dissecação da sombra libertando-a da "matéria" que a preenche, peças que podemos ver no Museu do Chiado, não podendo deixar de referir O Teatro de Sombras que explorou juntamente com Manuel Zimbro transformando o seu próprio corpo em sombra e matéria de ficção.


Grand Herbier D'Ombres
Foi feito na Ilha da Madeira em 1972, com as flores do seu jardim cujas sombras são fixadas através da luz do sol directamente sobre o papel heliográfico.

"Mas sobretudo gosto de plantas, sempre vivi com elas, cuidei delas e vi-as crescer." Lourdes Castro 1973







Sombras à volta de um centro

«Pouso a jarra com as flores
a base da jarra é o centro
a luz vem de cima
as sombras das flores projectam-se à volta
envolvidas pelo espaço do papel.»                             Lourdes Castro

Sombras à volta de um centro (Liláses II) 50cmx66cm - Lápis de Cera - Paris, 1980
Sombras à volta de um centro (Túlipas II) 66cmx50cm - Lápis de cera - Paris, 1980

Sombras à volta de um centro (Salsa), 61cmx39cm - Tinta da china e recorte - Paris, 1980

De entre as publicações que tenho tido acesso sobre a obra de Lourdes tenho que sugerir este livro, Lourdes Castro sombras à volta de um centro da Assírio Alvim com textos belíssimos de Manuel Zimbro onde no fim existe a imagem de uma das mais fantásticas peças que já vi, «Montanha de Flores» 1988-2003...



Em Março, o Museu Serralves irá dar-nos uma imperdível exposição antológica de Lourdes Castro e Manuel Zimbro, companheiros e colaboradores na vida e no trabalho ao longo de trinta décadas, onde de entre outros trabalhos de Manuel Zimbro poderemos encontrar a «História Secreta da Aviação» e espero também encontrar os desenhos de sementes que vêm de um lado para o outro.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

A faca não corta o fogo, Assírio Alvim


Estava eu em casa de um amigo a fazer conjecturas de como me via como mãe, até que subitamente ele diz "Tens que ouvir isto" e surge com este poema de Herberto Helder..

No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e orgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo.
São silenciosas.
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva,
em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos. Porque
os filhos são como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudez de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado
por dentro do amor.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Sementes de Música, para bebés e crianças


Um livro dedicado à música, magistralmente conseguido por Ana Maria Ferrão e Paulo Ferreira Rodrigues, com o apoio da Gulbenkian, para os mais pequeninos ensina como podemos dar a experienciar o mundo da música através de diferentes texturas rítmicas harmónicas e melódicas usando por exemplo o nosso próprio corpo, ou sons conseguidos de simples coisas ou até mesmo a compreender e explorar o domínio expressivo da palavra através de jogos tradicionais e rimas infantis, o livro vem acompanhado de um CD, e se à partida pensam que vão encontrar a típica construção musical infantil, desenganem-se, é realmente uma pérola com a criação de ambientes musicais diversificados e coerentes acompanhados apenas por instrumentos acústicos. Quem domine o código musical têm à disposição as pautas para as explorar e pode usar o CD como referência. Não posso também esquecer de referir as deliciosas ilustrações de Madalena Matoso.



terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Casa das Histórias


Este Domingo chuvoso, resolvi ir a um sitio que já andava para visitar à muito, A Casa das Histórias, uma casa especial, enraizada num jardim apelando à imaginação pelo seu corpo denso e vermelho, uma casa que por si só mesmo do exterior já convida a embrenhar num universo próprio, impondo-se com as suas duas pirâmides que buscam a afirmação por de trás das copas das árvores, depois lá dentro histórias e mais histórias, histórias que nascem de outras histórias, histórias povoadas de crianças, "monstros", animais personificados, e imponentes mulheres. Obras que cheiram a uma identidade tão própria que nos enche de sede de fazer, de pegar em pincéis, em tinta da china e de "coisificar"...


Paula Rego, Amor, 1995, Pastel sobre papel montado em aluminio, 120x160cm


  
               Paula Rego, Branca de Neve brincando com os troféus do pai, 1995, Pastel sobre papel