sexta-feira, 12 de abril de 2013

Ouvindo António Reis. Alentejo

[Recolhas]



OUVINDO ANTÓNIO REIS
o poeta do Porto
que foi ao Alentejo


Os poetas da cidade passam a vida às mesas dos «cafés», ouvindo-se uns aos outros, com aquela «pose» mais ou menos estudada e solene, que os botequins do Chiado tornaram tradicional.
Por ser assim, mais extraordinária se torna a aventura de António Reis, o poeta que foi à procura de Poesia viva e humana, autêntica e verdadeira, até à Província do Alentejo.
Foi e trouxe toda a poesia que encontrou, em flagrante, saindo da sua verdadeira fonte: a boca do Povo.
Admirável missão que um poeta podia propor a si mesmo, para a cumprir da melhor maneira: aderindo à mais pura essência da realidade humana, social e lírica.
Por isso o procuramos para lhe perguntarmos:

Quais as poderosas razões que o levaram ao Alentejo?

Conhecer na intimidade o seu povo e a sua terra... Razões propriamente mais humanas e telúricas que artísticas - uma espécie de pudor e de respeito pelo sofrimento não me consentiam outros projectos. Mas afinal, conhecer na intimidade o Alentejo implicaria dominar essa atitude sentimental e tornar a comoção mais útil e mais digna. Assim me vi envolvido subitamente por rostos, corações, lágrimas, nomes, factos, ais, pragas, objectos, poemas e música. Assim me vi subitamente subjugado pelas formas da vida e da arte, registando amarguras e esperanças, desespero e sonho, beleza e morte... - dia e noite quase alucinado, incontido, com medo dos próprios sentidos esfolando-se como a pele...

O que pensa fazer do precioso material que recolheu?

Entregá-lo a quem amar os homens e a beleza, para meditação, fruição e dor. Para tornar o Alentejo mais próximo de nós e nós dele. Para tornar mais consciente o nosso gosto pelo seu trigo, que na realidade não é como na cidade o comemos, branco, leve e fresco! Os poemas serão publicados em livro; a música será transmitida pela rádio e gravada em discos, possivelmente; quanto ao material de artesanato e humano, conjugado com a poesia e a música, constituirá assunto duma série de palestras que tenciono efectuar sobre o Alentejo em diferentes localidades.

Acha o folclore e a etnografia alentejanos ricos de conteúdo e forma?

Receio responder porque sou apenas um amador e porque a minha aproximação do Alentejo foi sobretudo um acto de amor. Acto de amor que me fez sofrer e deslumbrar por grandes e pequenas coisas - talvez consideradas por terceiros sem interesse dentro do âmbito das especialidade apontadas. Ocorre-me, por exemplo, a importância que dei ao lume feito ateando uma bolota seca pousada num vidrito por meio de atrito duma pedra de isqueiro cravada num taco de madeira ($30 para um camponês era uma importância diferente que para um etnógrafo); ocorre-me também a importância que dei às brasas que iam pedir à forneira dum povo para o ferro de passar a roupa ou aos tabuleiros de carapaus pequeninos que ela assava, por favor, no forno do pão; ou às ovelhas morrendo com o volvo, de fartas, ao lado de homens secos; ou ainda aos cardos beija-mão que não deixavam as camponesas lavarem-se sequer ou pontear; ocorre-me, por exemplo, ainda, a importância que dei às crianças dançando agora uma moda em cadeia e logo um mambo; a um rádio numa praça pública semeando joio e propaganda diversa pelas almas; ao cartaz e ao plano do filme chamado «O Tesouro do Templo»; às expressões como «um homem escuro», «uma mulher ocupada», «sovar a massa», «brandura», para significar: um homem triste, uma mulher grávida, amassar, orvalho, que registei ternamente como um poema rico de invenção, metáforas e vivências populares...

E a música e a poesia popular alentejana?

Sobre a música do Alentejo, Fernando Lopes Graça já tem dito, apaixonada e objectivamente, qual o seu valor e qual a tarefa a que seria necessário dar início sem demora, metodicamente, cientificamente, para recolher, proteger e vivificar um dos nossos patrimónios artísticos mais excepcionais. Escutar as suas palavras e os seus conselhos é o único caminho a seguir e o único juízo de valor seguro sobre este assunto. Sobre a poesia, espero dar uma resposta com as largas centenas de poemas recolhidos, abrangendo modascantigasquadrasversos de pé quebrado edespiques. Mas podem servir de testemunho alguns dos exemplos coligidos para esta página.

Têm recebido influências para bem ou para mal?

Evidentemente, que para bem. Para mal, só o meu desespero de apenas em condições dificílimas poder efectuar estes contactos (são 1.000 quilómetros ida e volta), tão necessários para os que conseguem levá-los a cabo, para os que ficam e para os que encontrámos.

Mais nada. Apenas uma quadra para os artistas portugueses, que ouvi cantar a um camponês do Baixo-Alentejo e que cito sem humor, antes solenemente:

«Ajudem-me que eu não posso
Cantar a moda sozinho
A moda está muito alta
E o meu cantar é baixinho.»


Jornal de Notícias, Suplemento Literário, pág. 5, de 4 de Agosto de 1957.

Nota: Na mesma página do Jornal de Notícias encontra-se um pequeno texto de Fernando Lopes Graça, "Versos de pé quebrado" de Joana Palma Neves (de 78 anos, camponesa), fotografias e um texto sobre os ceifeiros, "Líricas alentejanas" de António Joaquim Lança (cabreiro analfabeto, de 75 anos e nascido em Cuba) e ainda a "Oração das trovoadas" de Teófilo Alexandre (camponês).


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